sexta-feira, dezembro 18, 2009

Isso Conto Depois


Dela, o amor de sua vida, Deco escondia que era daltônico, que só enxergava preto e branco, dentro do preto o branco e vice-versa. Tinha medo que a namorada lhe escondesse algo tão ou mais terrível, uma doença, alguma crença estranha. Ele não sabia se o amor que tinha agüentaria um baque forte, de alguma surpresa, só tinha a certeza de que indo assim, de mansinho pelos dias e meses, seu amor era infindável.


A cada ocorrência tosca por causa de sua visão sentia em cima o olhar torto da namorada. Fugindo de um desses olhares, ele trocou de assunto e pediu um apelido para chamá-la, que só ele soubesse. Danda, foi a resposta. Se contorceu de contentamento e seu corpo, um saco de ossos, estalou, seu olhar fosco. Porém acuado por Danda em um dia ruim, preferiu admitir uma doença venérea a se dizer imperfeito dos olhos, se safando de falar da cor do vestido novo. Por essa decisão sofreu horrores, tendo que tomar o remédio na frente da namorada e passar pomadas caseiras feitas pela mãe de Danda, evidenciando seu infortúnio pros cunhados e quem mais a boca deles permitisse.

Morava sozinho e não tinha correntes de família. Temia perder a pouca liberdade que tinha quando não estava com a namorada pela procissão de amigos, colegas, conhecidos e professores de Danda, que começavam a vir junto no pacote quando ela o visitava e que começaram uns e poucos, a visitá-lo quando só. A garota fazia jornalismo e era grave com a respeitosa e importante futura profissão. Numa noite ele jogou fora as chaves da casa na boca de lobo, passava as noites na cada de um amigo, num sofá. Danda já tinha em sua rotina deixar o celular desligado durante os estudos, só seu namorado ligava. Nessas horas em que ficava incomunicável deco tinha vontade de chorar, únicos momentos que seu cérebro mudava e ele via preto e vermelho além da comum distorção dos objetos causado pelas lágrimas.

Depois de duas horas se decidiu pelo anel de noivado que achou mais bonito, sua vontade era já casar, mas sempre seguia escalas e achava natural ter que passar pelos degraus de angústia. Isso também era refletido no vestuário, diante do espelho acreditava vestir as cores da elegância, não por que só podia ver essas, mas por que desenvolvera o macete de não fazer suas próprias compras, mas mandar vir de sua cidade natal, compradas por um amigo de infância. Era um engano, seu amigo acreditando trazer alegria à vida de seu conterrâneo e simultaneamente ao guarda-roupa que as receberia, mandava das cores mais diversas: da mostarda ao catchup, ocre e lilás, concreto e tijolo até da universamente conhecida cor de burro quando foge. Mas era esse entretenimento todo que causava amor a sua namorada, verdadeiro e monogâmico.

Às sete horas e pouco de um verão, pela manhã, os dois sorriram mais que a cara por que ela aceitou o pedido, à noite trocaram caricias íntimas, não inteiramente no sentido bíblico, obviamente depois de se constatar, com atestado médico, que sua doença venérea acabara. Dois meses depois Danda se esforçava pra lhe mostrar a barriga, ela estava grávida, Deco disse que no dia do noivado não chegaram aos finalmente. Mas ela ofendidíssima, preferiu só repitir a frase da mãe: “Nas coxas”, e ele fez cara de que entendera. Sete meses pagaram o anel, o restante do casamento, deram um jeitinho, seria financiado.

A bolsa de Danda estourara, correram para o carro, Deco fez uma constatação: devido ao nervosismo a cada duas piscadas via roxo e branco, se piscava mais uma vez voltava ao normal, mais uma piscada o roxo vinha lhe invadir os olhos. Acelerava seu carro roxo o mais que podia, mas só atravessou a última avenida até o hospital quando sua mulher gritou “ tá verde! ”, o farol estava na horizontal, política de trânsito. Assistiu ao parto, não gritou que era menino nem menina (coisa que eles ainda não sabiam), gritou “ é roxo! ” e saiu soluçando e espantado. Só voltou a ver a esposa dias depois, podia se perceber que não se alimentava bem, quis ser sucinto, disse que queria tudo às claras, preto no branco. Convalescente de parto difícil ela disse “eu te amo”, Deco perguntou da cor do menino. Danda levantou com dificuldade e colocou o bebê nos braços do marido. A criaturinha mexia os olhos, sua cor era pálida, da mesma cor de Charles Chaplin. Deco ainda balbuciou uma réplica. “Você é burro seu indigente, é seu filho!”. Há tempos estagnada em sua garganta a bola de raiva, parte saliva, desceu com a descarga apertada por Danda. Imaginando os problemas que seu filho podia ter se herdasse seus olhos, “ tenho que te contar uma coisa...”, com dificuldade resolveu falar e depois de alguns instantes, “ sou daltônico!”, a esposa passou a mão pela testa do marido, “ e você sabia que sou adotada?”.




Fim

6/Nov/2009

Um comentário:

Lady Cronopio disse...

grandeza absoluta neste escrito.
menino danado!
consegue-se ver tão bem as figuras que se soltam das letras...
eu tiraria a foto que está... algo mais... "daltônico", poria.
abençoado estás, Partner.