terça-feira, setembro 05, 2006

Conto dos anos velhos

Meus Olhos

Num sofá mas parecido com um divã, Bárbara deitara-se há algum tempo e como era seu costume deixou os pés cobertos por uma pequena manta azul escuro, segurava seus dois comprimidos para os ossos pois seus sessenta e sete anos não eram brincadeira. Tomado o remédio adormeceu ao som lento do artista.
Agora que Bárbara dormia, ele, que era Pedro, teria um tempo livre, é claro que suas pernas doíam, mas aguentaria, era hora. Seus sapatos já tão velhos serviriam para uma caminhada? Pedro se perguntava se a caminhada seria curta ou longa...curta ou longa? O vento há essa hora, seis da tarde, começava a ficar mais forte, nada que espantasse o calor daquele verão fora de época. Saiu pela porta que rangeu como todas portas velhas rangem, desceu a pequena escada e foi em direção ao portão que era pequeno e misturava negligentemente madeira e ferro enferrujado, os três pássaros nas gaiolas cantaram amargamente, Pedro parou e olhou para as aves e até sentiu vontade de soltar os frágeis e coloridos pássaros, porém a caminhada e seu tempo lhe pesariam mais, depois, em sua consciência os pássaros tinham comida, sombra e na maioria das vezes, água fresca. Sua mão segurou a tranca e ele abriu o portão e sorrindo se precipitou para fora e depois de alguns passos lentos e meio mancos ouviu uma voz calma, fraca, quase melíflua se não fosse a voz de velha, Pedro recuou, retrocedeu para a casa e viu sua mulher a sorrir.
— Bárbara, por quê insiste em me chamar de Bernad? Indagou Pedro com fingida raiva, sem hesitar entrou na casa e encontrou sua mulher ao pé do rádio tentando encontrar a estação.
— Querido, sair sem tomar os remédios é tanta loucura! e apontou o vidro novo de remédio cheio e lacrado. Com a explicação de ter ido lá fora porque ouviu alguém chamando, Bárbara não mais o interrogou, como ele o achava, e ela só disse, calma, entre bocejos:
— Bobagem...bobagem...
Às sete, o jantar, uma sopa rala mas saborosa, estava servido. Ele comia (bebia) a sopa com exclamações como "Ah, está boa!" ou " Como é sopa boa!", ela sorriu, um meio sorriso de satisfeita, vitoriosa. Tudo ficou muito quieto. Depois do jantar, Bárbara já estava deitada no quarto do casal e ele chegou um pouco alegre, sentou na cama, olhou demoradamente e disparou:
— Você cheira à esmalte!
Ela entrecerrou os olhos e ofendida se levantou e foi sentar no sofá. Mudou de idéia e com sua mãos magras mas ágeis, procurou, em cima do armário da saleta, uma caixa, a sua caixa verde-cinza, colocou-a no sofá, cobriu-se com sua inseparável manta e foi para fora, lá encontrou a chave da tal caixa. Já dentro da casa, abriu sua caixa e com olhos de cobiça, meteu-se a olhar para seu interior, à espiá-la, o marido na porta do quarto, ela o percebeu e escondeu sua preciosidade.
Bárbara se assustou, agarrou-se ao xale e saiu da casa afobada e vermelha, Pedro a deixou ir, calmo fechou a porta por onde o vento noturno, forte e frio, começava a entrar, depois se dirigiu ao quarto, se cobriu e preparou-se para dormir um sono bem dormido.
Ela se sentou no chão barrento, estava longe de casa, havia perdido a sua manta, sentara-se para descansar um pouco. Levantou e quase cega, voltou-se de costas e seguiu para o caminho de onde viera, procurava pelo chão, sua manta e não só pelo frio que aumentava, mas também porque a manta tinha um pequeno e escondido bolso onde ela colocara a chave da caixa, e procurou, procurou e procurou, mas nada, um pouco desesperada, deixou-se cair no chão, de lado, e chorou, um choro até controlado, porém verdadeiro e rancoroso. Por sorte, antes de sair abruptamente da casa, não fechara a linda caixa, então, colocou a caixa ao seu lado, curvou-se sobre ela e a abriu, devagar, e podia-se notar um sorriso, lânguido, mas um sorriso.
Com suas mão sujas de terra molhada, Bárbara bateu na porta de sua casa, visto que estava trancada, a porta assim de fora e fechada parecia até uma pessoa, um humano que virou porta e ela sujou a porta ainda mais acariciando-a, a porta pessoa abriu-se ou melhor, foi aberta, Pedro a olhou espantado.
Bernad, por que trancou a porta? Ela entrou assim, sem olhá-lo
— O quê estava fazendo, desse jeito, toda desgrenhada, lá fora?!
Ela o olhou, uma expressão sombria, expressão de cavaleiro morto à traição e gritou:
— Pelo menos eu não tenho um tio assassino!! e foi-se para o banheiro onde pretendia tomar um novo banho.
A manhã estava fria, mas isso acontecera todas as manhãs aquele mês e além do mais à tarde o sol brilhava vigorosamente. Pedro parou com seus pensamentos e andou por toda a casa, talvez estivesse à procura da caixa, não encontrou e decidiu seguir as pegadas da mulher que podiam ser vistas pela janela da casa, as pegadas de Bárbara eram bastante visíveis, já que na noite anterior havia muito barro que agora estava seco e entregava o caminho a seguir. Foi fácil achar a manta, estava muito suja, satisfeito, voltou pra casa, colocou a manta no tanque fora de casa e entrando encontrou sua esposa a jogar no lixo os tantas remédios não antes de estragá-los completamente.
— Finalmente algum juízo! disse Pedro rindo, bateu amorosamente nos ombros da esposa.
— Uma bobagem, só... só isso.
No almoço que foi uma sopa grossa, mas sem gosto, não houve qualquer discussão, a alegria dele ao comer, como sempre, continuava tal como a satisfação dela.
Os dois estavam no sofá quando Bárbara tirou do bolso uma carta, amassada e suja, e só era possível ler no envelope em letras quase apagadas: Para: A. Bárbara , e aborrecido ele disse:
— De novo isso...num sei.
— Deixa...me deixa, respondeu ela, calma.
— Sei que é bom, mas não ajuda, num.
— Tu que achas, tu que achas...
Ele se levantou e saiu, no tanque, lavou a manta, e a deixou no sol, ele não achou chave nenhuma, não havia mais chave na manta. Mas tarde, ela viu a manta no varal e correu, pegou a manta, já seca, e a encheu de beijos, percebeu que a chave não estava lá, mas não desconfiou do marido, não queria desconfiar e não desconfiou.
"Gostou da surpresa querida?", e ela: " Sim, meu amor, é claro.", "Achei lá fora no barro.", " É, eu sei...". Sem a chave não podia fechar a caixa e mesmo se ele estiver com a chave não precisa dela, pensava.
E ela queria ler a carta novamente? não sei se é o melhor, mas é o que tenho, é o que tem? Seus pensamentos se contrariavam, não importava, ela lia a carta, a mensagem era curta e talvez por isso ela lia e relia a carta durante muitos minutos. O velho Pedro ficava realmente embaraçado ao vê-la naquilo que ele considerava "patologia, é.", além do mais o médico não aparecia há muito.
A música vibrava por toda a casa, saía do rádio-relógio pequeno e tão antigo quanto os moradores, era uma música fraca desses novos cantores, Bárbara jurava que já havia ouvido aquela música há muito. A letra da música falava de paixão e seu refrão se instalava na nossa memória de forma calma a esperar uma hora certa de vibrar na mente e por sua vez o refrão encheu a casa:
Seus olhos vítreos
me enganaram, Ah...
Sua voz lupina
me encantou, Ah...

E o refrão continuou na casa por muito mais tempo do que a música e encheu ele e ela de mais ternura e até um beijo, de lábio com lábio, poderia ser visto na hora que aconteceu, porém havia a caixa, a carta. Às dez da noite, o velho Pedro já estava deitado e sua mulher lá fora, no quintal, juntava galhos finos, sem tirar a caixa de debaixo do braço. A atmosfera que envolvia o lugar, quintal, casa e todos os objetos, era tensa, como quando vai chover, tempestade, e os moradores sentiam e sabiam. Não vai chover, eu sei.
A caixa foi colocada no meio dos gravetos, a fogueira seria forte, mas não grande e a carta foi colocada em cima da caixa e Bárbara com lágrimas nos olhos, abaixou, pegou o querosene e molhou tudo, suas coisas, e também pegou o fósforo, riscou e... porta se abrindo, de dentro da casa um som calmo, música...
Seus olhos vítreos...
O fósforo caiu e o fogo nasceu, se mostrou forte e cintilava iluminando o quintal, mas era luz estranha...
me enganaram, Ah...
A voz do velho Pedro soou, voz de arrependido, "Meu amor, me desculpe... eu...", voz branda a dela: "Bobagem... nada...". Ela olhou pra ele e seu rosto se contorceu...
— Tirou da caixa? não...não! Ela falava de modo imperial, olhando para o que ele trazia na mão.
— Eu pensei que era o melhor a - sua voz era como de criança - ser feito...
Bárbara se virou e olhou direto pra fogueira e correu em direção dela, - Sua voz lupina... me encantou, Ah... - sem pensar muito, ou melhor, só pensando, ela se jogou no fogo numa pirueta vagarosa e selvagem salvando a carta, que começava a fazer parte do combustível do fogo, a carta, queimada só nos lados, resistiu... ela estava bem, sentada com a carta na mão, tinha a expressão - lupina - vitoriosa de um rei vencedor de guerra, ele se aproximou, sentou e a envolveu em seus braços, mas ela se desvencilhou e pegou a peruca vermelha, olhou-a com vontade, olhou como se visse verdade. Quando o fogo se extinguiu, a peruca mostrou sua cor atual, cor cinza, "como meus cabelos", a peruca perdeu a cor... "eu sei.". Bárbara se dirigiu à casa segurando preocupada a carta e a peruca, resignada. O velho se sentiu mal, levantado, ficou muito tempo respirando a noite e limpando o quintal.
No dia seguinte, Pedro acordou tarde, na cozinha Bárbara cantarolava com seu ar satisfeito de sempre, ele sorriu seu sorriso, e a abraçou, ela gostou e deixou-se entre os braços do marido, por cima dos ombros dela ele viu, dentro do armário, os remédios, todos, para os dois e abraçou mais forte e disse:
— Deixo você me chamar de Bernad...
— É que eu sinto, só isso... só.
— Mas a carta e o presente - e a beijou na testa - nem eram pra você!
— Mas... é como se fosse... como se fosse.
Na mesa uma caixa, verde musgo, aberta; dentro, o presente, a peruca e Bárbara pegou a carta, abriu e leu olhando para o marido:

Linda Ana, te deixo essa linha, e um presente, desculpe meus olhos,


Carlos



Clayton Camargo

Um comentário:

Anônimo disse...

meu deus.
estes "olhos lupinos", este bailar de Bárbara na fogueira a salvar um passado que nem mesmo lhe era...
ah, Partner...
como é bom ter você nesta Era.
ainda que tantos vãos e trincheiras sinuosas de tempos e espaços nos separem.
e.
é.
me emocionou.
abraços e beijos gigantes.