sexta-feira, abril 13, 2007

Vejo Meu Cérebro

Me diziam há tempos garoto não vai por aí. Hoje um cara de olhos muito vermelhos perto de um bar me parou e perguntou se eu não tinha um real pra dar, não tenho, disse baixo, fiquei com medo, senti minhas mãos suarem assim como as minhas costas e isso depois, depois de já estar totalmente seguro. E isso não condiz com o que eu era, é claro que lembro muito daquela época, mas não passo mais tanta fome quanto passava. Nem passo mais fome, longe disso. Tenho dinheiro que não sei onde colocar. Andando e pensando é o que faço agora. Tudo parece igual: as ruas e casas, são diferentes, mas num mesmo estilo tão copioso e enferrujado e concreto rachado de muros e calçadas que é tudo igual. Essas ruas só sobem descem sobem e descem e vejo agora o mato grande avançando numa casa abandonada, mato e concreto me parecem tão integrados como osso e carne de um animal vivo só que mais: como osso atravessando a carne, tudo vivo ou vagando. Vagando vivo. Apanhou e saiu tanto sangue e um tiro, por final, na cabeça, que sua massa encefálica vazou no chão e sua mão permaneceu agarrada a um poste. E a mulher desse homem viu tudo e saiu dizendo não sou mulher dele não sou mulher dele e saiu sangrando porque estava menstruada e dizem que sentou na privada de um lugar e a privada ficou vermelha e o sangue saiu só depois de tanto tempo.
— Continua, o que aconteceu a essa mulher?!
— Conto se você me levar pra sua casa.
Ela muita safada disse que sim.
— Enterraram o marido sem cérebro e ela foi.
Continuei rindo:
— Teve gente que pegou o cérebro e comeu. Não, não sei se é carne, mas tanta fome.
Depois disse pra ela que ela gritava e gemia muito, ela respondeu que
— Sim.
Andando e pensando. Paro nesse banco, pego meu Alcorão, leio e me acalmo . Só que ela descobriu que eu bebia muito e me despediu. Tão jovem e bêbado crônico. O que isso que ela quis dizer de crônico? Sou alcoólatra sim.
— Sim.
Meu emprego me dá extremas condições. De tudo. Mais um pouco faço o que quiser. Levanto, atravesso a rua (olho para os lados, não quero morrer) e chego a Cooperativa. Sou amigo deles, nos meus dias de folga às vezes passo o dia todo aqui, saio cheirando água sanitária. É uma Cooperativa de reciclagem, me junto ao pessoal que usa essa água. Levo minhas radiografias, então eles mergulham elas nessa água e a tinta sai só fica aquele plástico azul que usam. Uma vez levei um pouco dessa água com a tinta e taquei em uma planta que não gostava. Quando acho que estou com fome eu rio. Nunca tenho fome como quando era muito pobre, mas é claro que penso às vezes que estou passando fome. Levo minhas radiografias pra lá e vejo tudo sumir escorrendo, doenças e ossos. Osso de galinha na garganta é o que acontece enquanto não combatermos coisas das mais esféricas às embrionárias. Levei um soco por falar isso. Nesse meu emprego não tem mais isso. Consegui tudo isso, estou praticamente rico. Não há mais casas e casas caindo ou favelas barracos. Sou sortudo e sei, sai de lá e isso me deixa eufórico. Eufórico nesse apartamento. Irei para Londres, aprenderei inglês fácil e fácil. Se um dia eu morrer falando inglês: and my mind is moving low. Rio não de Janeiro, rio. Viver e não vagando em Londres. Ainda sim hoje eu parado na janela do meu apartamento olho que lembro a maior felicidade que foi quando meu pai e minha mãe me acordaram e acordaram meus irmãos abriram duas caixas em cima da mesa e me mostraram latas de conserva e abriram as portas do armário descascado e com formigas e lá, em todos os lugares latas e mais latas latas de salsichas e legumes e sardinhas e carnes, meu pai saiu e voltou com mais caixas, olha aqui tem lata pro resto da vida ele disse e com mais latas nas mãos, latas tão pequenas e muitas espalhadas até no banheiro e enterrado no chão-quase-batido pra nenhum vizinho roubar. E eu tão feliz de explodir, por que eu não explodi? Mas tão feliz de amar até as formigas que andavam em mim e amar meu pai e mãe tanto e beijar meus irmãos mais sujos que qualquer um, mesmo que as latas não durassem muito e elas não duraram. Felicidade, felicidade tão bronquitíca.
Até hoje lembro todos os movimentos de todos naquela manhã, um e outro o que faziam, onde suas mão iam e sua pés juntos de frio e pulantes de alegria. Todos como radiografias, aquelas pessoas comigo naquela manhã. Exultante eu estava como se pudesse dizer qualquer coisa. À noite eu levanto e vejo minhas prateleiras cheias. E não há mais nada, como é bom. Não tenho nada e como é bom. Sou um rico perfeito. Agora. Agora. Comigo acontece tudo assim, agora se quiser explodo tudo, acontece tudo assim, o importante, nas desoras.


"It's the end of the world as we know it.
It's the end of the world as we know it.
It's the end of the world as we know it and i feel fine."
R.E.M.

Um comentário:

Anônimo disse...

Por que nao:)