sábado, agosto 12, 2006

A Demissão da Funcionária Funerária



Ninguém riu, mas foi quase uma unanimidade intimamente, salvo um garoto e Carlos. Não riam, admiravelmente não riam e poderiam, quando todos os "convidados" do velório chegaram a família se ausentara e não havia ali nenhum amigo tão íntimo que pudesse tomar as dores da possível risada, admiravelmente ninguém ria.
Se rissem, ririam porque o morto, um homem de uns oitenta anos, tinha as mãos sobre o peito, como é sempre, e entre as mãos uma maçã, não dessas pequenas e de várias tonalidades, essa era grande e vermelha, como saída de um conto de fadas, vermelha e com um pequeno cabo que sustentava uma folha verde verde.
Como alguém entrasse pela porta agressivamente, errando o velório que deveria entrar, não olhou por isso o rosto do morto. Só sorriu, abestalhadamente, quando avistou a maçã, automaticamente subiu o olhar para a cara do morto, parou de rir. Carlos ficou sabendo o motivo de todos conterem o riso, não teve como não pensar que "o velho morto ri antes". O sorriso fraco do morto era visível, um sorriso sem mostrar os dentes. Carlos sabia que seu pensamento sobre o sorriso do morto fora infantil e primário, o defunto poderia estar com aquele sorriso por motivos vários: segundos antes de morrer umas cócegas, ou talvez uma piada e o que mais condizia com o sorriso, uma leve ironia. Carlos passou os olhos pelos presentes (o homem já havia saído), todos continuavam quietos, olhando para baixo ou para um lado vazio. O garoto de oito anos brincava com a madeira do caixão. Carlos fechou os olhos, sentiu uma pontada na testa e uma sensação horrível o invadiu: era como se alguém, com seus dedos indicadores apertasse suas têmporas continuamente, com intervalos pequenos; sentou, horrível Ter que olhar toda aquela gente em pé, estranhos uns aos outros, deixando nele a quase certeza que todos ali haviam errado de velório. Tomou conta dele um desejo desesperado, o desejo da maçã, como ela deve ser banca e suculenta por dentro! E era, lembre-se, essa maçã, agora, saída de um conto de fadas ou filme, era, branca e suculenta por dentro. Sua sede só seria morta depois de uma dentada na maçã, maçã.
Mas não houve tanta angústia como ele imaginou que sofreria. Soou um apito, todos saíram, tristes, para uma sala, um tipo de serviço da funerária, comida e bons sucos. Carlos ficou sozinho, minto, havia a maçã, o garoto escondido embaixo da caixão e o morto, mas Carlos não sabia disso, salvo a maçã; levantou, perto do caixão se deu conto do morto, o olhou. Pegou a maçã, ia saindo, o menino lhe chamou, se olharam, o garoto disse como alguém que lhe conhece há muito: "Eu vi", Carlos sentiu seu coração bater descompassado, se sentiu mal, foi indo para o jardim; Lá fora, aquele vento e a noite o ajudariam a respirar melhor, não, desde de que vira a maçã não a esquecera, a analogia com o desejo sexual lhe fez rir, ouviu o riso como uma bombinha pequena, fraca, mas estridente, se assustou, rir assim. Nesse entre tempo a maçã lhe escorregou das mãos indo ficar quieta e vermelha no chão branco, embaixo de suas pernas; abaixou, sentiu a maçã nas mãos - esquecera o menino -, olhou por debaixo das pernas, sentiu a camiseta ficar molhada e as faces quentes, imaginou ver sentado sobre o próprio corpo, o morto, com aqueles olhos abertos e cabelos brancos e um sorriso. Quase caindo, saiu meio correndo pro jardim, lá sentou num dos degraus de uma escadinha de mármore com a sensação de Ter definitivamente, matado o velho morto, sorriu.
A pressão nas têmporas continuava, sua maçã lhe vibrava nas mãos. O garoto o observava por de trás de uma janela pequena, o vidro o deixava menos branco mas mais pálido, abriu a janela, o olhou, chamou-o, lhe disse:
-- Eu não comeria...
A vontade da maçã era imensa, há semanas não provava uma, não se ouve um menino, ainda mais com uma maçã vermelha de conto de fadas ou filme.
Seus olhos se avivaram, perderam sua palidez interior; nas mãos eletricidade fugitiva, como a avivar-lhe os dedos; na boca, a saliva emergiu, o prazer, o gosto da maçã e nunca aquela fora uma maçã paradisíaca – a sensação nas têmporas cessara -, Carlos gostou de, ali com o vento, a noite e o chão se sentir o único soldado vivo, esperando o inimigo, sem coragem e consciente e gostou também de pensar: "E como se a casca vermelha se juntasse com o meu sangue, a poupa branco com minha pele, estou, invariavelmente, de trás pra frente e todo esse contato criou algo, não sei bem o que é, o que é? Sei só que é violáceo!".
O que faz a maçã em seu peito, o que faz ela em teu estômago? O que não é purificado morre, Carlos, se eu pudesse dizer, é só uma maçã.
Depois da mordida, nas suas mãos, a maçã murchara, não era ela. Dela mais não precisava, levantou, vou embora, viu a maçã caída no chão, deu meia volta, foi entrando devagar na sala do velório, já cheia e quente. Um choro baixo, agitado vibrava na sala, viu que com as mãos nas mãos do velho morto o garoto chorava:
-- Vô, não, vô! Volta, vô!
Na porta de saída olhou para trás, distinguiu pessoas rindo e chorando discretamente. O barulho que ouvia agora todos ouviam, um trator, é, um trator batendo no asfalto, obras. Foi embora, alguém ainda lhe tocou no braço, de olhos chorosos e, "obrigado, aquela maçã era ridícula, obrigado por tirá-la". Descobriu num estalo que violáceo era um ruído, nunca barulho, que existia em todas as suas células. Riu meio decadente, satisfeito, um ruído violáceo. Sou eu.


Dias depois a revolucionária funcionária da funerária foi despedida, mesmo com dois dias de experiência não se pode esquecer que decorar um morto, velho (ou qualquer outro), com uma maçã entre as mãos fere as pessoas, ainda tão Vermelha, chama atenção.
27/ab/2006

2 comentários:

Anônimo disse...

Clayton, adorei o conto.
Mesmo com o título fiquei presa
aos detalhes do morto e do velório em si. Bom fds : )

Lady Cronopio disse...

É a segunda vez que leio este conto e fico tonta.
Não consigo dizer o sentimento que me traz.
Não consigo abstrair uma avaliação crítica.
Só consigo meditar...
Maçãs... violáceos... velórios... garoto... trator... cócegas...
Essas coisas.
Danado!
(abraço)