quinta-feira, agosto 24, 2006

O Que Me Incomoda à Noite

Tinha esse cachorro que morava ao meu lado, separados por uma parede de madeira. O seu dono me cumprimentava todos os dias pela manhã, e eu ria ao lhe estender a mão, bom dia, tudo bem? Sim, senhor. Dois pobres agindo mais decentemente do que o dinheiro que tínhamos. E a casa que partilhávamos nos permitia, não só termos modos piores como, juntos, xingarmos o proprietário, tão pobre como nós, mas xingá-lo, do quê, não seria problema, tudo bem que sem um sentido próprio, tudo bem.
Esse cão ocupava um lugar junto à madeira, um lugar pequeno e lá que enchia o saco. Estragava-me todo e qualquer verso, parecia até dinheiro. Arranhava, noite pós noite, a parede, um dia ele vai furar, vai fazer um buraco nessa madeira e vou matá-lo. Dava socos na parede, gritava pára, mas não adiantava. Noite pós noite, cansado, só conseguia dormir depois, depois desse cão adormecer e eu quase juro que poderia ouvir a respiração desse cão dormindo, fundindo-se com o ronco do dono; de manhã, poderia também, depois de lhe cumprimentar, olhá-lo bem na cara e dizer-lhe: Meu Deus, esse cachorro não se parece nada com você! Talvez me respondesse, mas quem gosta quando alguém lhe responde algo que você afirmou e que não precisa de resposta.
Esse cachorro não me olhava, nem quando lhe trazia um pouco de ração, talvez receasse essa ração, eu também prefiro arroz e feijão, apesar de achar esta última palavra tão feia como o cão
O cão rosna e ladra. Late e late, via todas essas expressões, mas rir não dá, esse cão não era humano.
Acordava de madrugada e ouvia esse cachorro escavar inutilmente a parede. Por décadas se revezaram cães e cadelas a escavar esta parede, é claro que não. Só esse cachorro e ele fazia o barulho de um único cão. Mas nunca reclamei ao seu dono, vai saber porquê.
Um dia com meu cigarro quase caindo da boca ainda apagado, vi o dono brincar com seu cachorro e o cachorro retribuir-lhe com lambidas, mas sou eu que escuto toda noite na tentativa de achar outra coisa.
Noite. O cachorro não pára de fazer barulho, como se cavasse a parede. Nunca tentei entrar sub-repticiamente no outro lado, o lado do dono, para ver o estrago que o animal fazia. E essa noite esse cão cavava, como nunca; ouvia a madeira estalar; latidos animados; levantei um pouco, sentado na cama; ar frio; latidos e latidos.
Esse cão rompera a madeira, entrava agora no meu quarto, vi a parede esburacada. Latia como nunca; corria pelo quarto; cheirava. Esse cão, esse cão das noites, ele que cava e escava sem pretender o futuro. Esse cão Quincas Borba que me enlouqueceu noites pós noites havia conseguido!
A porta que separava o meu lado do lado dono do cão abriu. Saiu o dono de lá, passando a mão pelos olhos e a outra tapando um bocejo, acabara de acordar. Ajoelhou, vem menino, pronto! Vem! O cão correu para seus braços, feliz, lambeu-o, latiu amigavelmente. Você conseguiu, menino!
E o dono estava mais presente, sempre, na tarefa de seu cão, mesmo dormindo, do que eu, que o escutara todas as noites. O dono ria por seu cão, que latia por ele. Eu só virei, abaixei e adormeci muito rápido.
O cão e seu dono foram embora, fiquei, eu, com meus livros e esse buraco, pretendo consertá-lo. Quando? Hoje mesmo se for capaz. Hoje vou ter uma noite tão boa e quieta que poderei dormir em paz. E esse cão e, essas coisas, penso: Nós vamos tão surtindo àquele efeito.

21/Ago/06

2 comentários:

Lady Cronopio disse...

Adorei, Clayton!!!!
Muito bem escrito.
Olé!
Beijos e.
Alba

Lady Cronopio disse...

E me lembrou Kafka, agora relendo.
Vixe!
Tô viciada aqui nesse cantinho...
Releio como faço com os bons livros!
Beijos e.